dezembro 04, 2010

YES


“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou” (LISPECTOR, 1977, p. 11)

As coisas invisíveis tomam forma e voz nesse brilhante e inquietador filme de Sally Potter. Uma diarista falando sobre a sujeira e os seus significados: as leituras que se podem insurgir do lixo de cada um – não apenas o lixo visível, mas a poeira, os pêlos, o DNA, os micróbios: “Eles existem, fornicam em todo lugar e se multiplicam. Eles estão vivos porque partes de nós estão mortas” (tradução livre).

A voz da doméstica dando existência àquilo que se esquece que existe é uma redundância e uma alegoria da própria estar falando: a câmera de Potter faz questão de mostrar e dar ouvidos a cozinheiros, estrangeiros de países do Sul e do Oriente, como quem diz “Vejam! Eles existem e eles falam”.

A narrativa gira em torno do romance de uma cientista microbióloga e um cozinheiro em Londres. Ambos, estrangeiros: ela nasceu na Irlanda e viveu boa parte da vida nos Estados Unidos; ele, nascido na capital do Líbano, Beirute, tendo se formado cirurgião lá, fugiu ameaçado de morte, por tentar salvar a vida de um homem.

Guerra! É a melhor palavra para definir o filme – “A guerra está na alma do homem” – e até mesmo no relacionamento amoroso: ele é um médico e ela também, ela lida com microvidas e a empregada doméstica conhece também a existência dessas mínimas vidas, mas há uma grande diferença: “É você! O seu povo se sente superior. Vocês querem reinar!” diz ele, ao propor o fim do relacionamento, pois se sente invisível ali e precisa voltar para Beirute. As microvidas existem e todos as conhecem, mas é ela quem quer aprender, entender, dominar. Guerra, os superiores e a invisibilidade dos povos.

Não falo do final para não ser descortês com quem possa se interessar em assistir. Falo apenas da forte ligação que senti deste filme e as primeiras linhas de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, que epigrafa essa resenha. Nada nos informa uma possível leitura do romance por Potter, mas o final é tão claro e a ligação tão evidente: “Não existe tal coisa como o “nada”. Pode ser muito pequeno, mas ainda está lá. O ‘não’ não existe: existe apenas o SIM!”

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