dezembro 14, 2010

Iê Iê Iê - Arnaldo Antunes

Parece um ensaio, um aquecimento, ou uma sincronização onde os músicos estão apenas se ouvindo para se saberem. O Iê Iê Iê (2009) de Arnaldo Antunes é, assim, ‘divertido’ do início ao fim.

Passa uma certa sensação de “Certo. Que horas o CD mesmo começa” mas não por falta de qualidade, muito pelo contrário, a intenção é exatamente essa (ou não – já falei que eu não sou profissional em nada do que falo aqui?). A sensação é causada nas duas dimensões mais óbvias das músicas que é perceptível pelos ouvintes: 1) a composição musical e 2) as letras.

As guitarras e violões não parecem ter efeito algum, são como se os músicos tivessem ‘plugado’ instrumento-cabo-amplificador e assim começaram a gravação – nem estou dizendo que não se usa efeito algum, muito menos que é assim com todas as músicas, mas a sensação que se quer passar é essa. A sensação é partilhada pela maneira com que Arnaldo usa sua voz nas músicas. Lembra daquele grave que parece vir do começo da garganta dele? Pouco o usa, mas é nessa parte mesma da garganta, forçando um tipo de agudo nasal (quase em tom de chacota) que assim gravou.

As letras parecem ter vindo junto das harmonias, tipo, feitas em ensaio. Ou, mais radical, as letras parecem escritas depois da música completa, para preencher a sensação de susto, de imediato. Buh: um bom exemplo da “cara” de ensaio que o CD possui está na quinta faixa, Longe 5’34”, quando o cantor conta – conta mesmo, dentro da faixa – os tempos antes da mudança de tom.

Me justifico, rapidamente, dizendo que é apenas a “cara” mesmo de ensaio. Brilhantemente elaborado, letras e músicas, foram feitas para passar esse sentido e nisso ganha muito mais em criatividade. Backing vocals bem localizados, um novo tema de velhos e popular, um resgate do bom som brega brasileiro, por fim, excelente trabalho.

dezembro 06, 2010

Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa


"Nós canto-falamos como quem inveja negros
que sofrem horrores no gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
e deixa que digam, que pensem que falem."
(Língua - Caetano Veloso)


Resumão da vida e obra de Bakhtin, o livro/ensaio de Robert Stam traz ao contexto do final do século XX, os anos 80/90, o legado que Bakhtin deixou ao morrer em meados dos anos 60 e atualiza suas teorias, que agiam preferencialmente na linguagem verbal, para a linguagem do cinema. Stam justifica seu posicionamento teórico e crítico nos próprios escritos do russo – apesar de ele nunca ter delineado nenhum comentário sobre a “máquina-cinema” que com certeza viu surgir e se renovar – mas a noção dialógica que Bakhtin concedia a linguagem, anti logocêntrica e estruturalista, além de outros conceitos seus como o da carnavalização, são perfeitamente aplicáveis nas teorias do cinema novo e contemporâneo.

O livro traz em primeiro plano e, cronologicamente, cada obra escrita por Bakhtin, o momento que passava em sua vida durante a escrita destas, os motivos que o levaram a ser exilado da Rússia no stalinismo e supõe, por isso, talvez, o grande hiato que existe entre a produção de sua obra e seu reconhecimento acadêmico e teórico pela comunidade.

Por mais variadas que sejam as pesquisas do russo, alguns conceitos e temas nunca o escapam e sempre se repetem, muitas vezes por outros nomes: dialogismo, carnavalização, polifonia e o erotismo grotesco. Sua teoria não foi feita para impor-se perante alguma outra, mas para cultivar o diálogo, a comunicação entre as diferentes partes. Assim, pretendia desestruturar toda e qualquer idéia de hegemonia, pois fica claro que em um espaço ideal onde todas as vozes podem ser ouvidas e colocadas em jogo discursivo, a monovoz da hegemonia desaba.

Bakhtin escrevera uma diversidade extraordinária de textos, que abordam diferentes autores – Dostoievsky, Rebelais – e temas – Idade Média, poética russa, narrativa, polifonia. A contribuição desses estudos são perceptíveis em diversas áreas da Literatura e da Linguística atuais, mas nesse livro o olhar bakhtiniano é voltado para as grandes telas, os holywoodianos, o cinema.

O cinema é a arte cultural por natureza. A sua meta-ultrarrealidade tem o poder de revelar, balançar e balancear qualquer ordem imposta impositivamente, um dos pontos caros às teorias de Bakhtin. Esse balanceamento pode ser feito usando qualquer uma das outras idéias bakhtinianas como tema: filmes que tematizam os carnavais, que retratam a vida exagerada e obscena da nobreza, a própria pornografia como imagem do corpo grotesco e livre – pelo menos, em análises preliminares – a guerra, o sangue, a carnificina, etc. Enfim, temas e teorias muito caras ao cinema contemporâneo, mesmo os de mais pompa, como os besteiróis americanos.

Brilhante livro de Robert Stam que, mesmo não tendo nascido no Brasil, é grande conhecedor do nosso país e do cinema brasileiro e faz uma pequena dedicatória aos estudiosos do cinema e de Bakhtin no Brasil, em sua introdução.

dezembro 04, 2010

Bakemonogatari


Antes eu imaginava que os mangás japoneses estavam para os romances europeus como o mesmo tipo de produto para línguas diferentes. Pensava que, por ser uma língua tão ‘desenhada’ seria difícil escrever grandes narrativas com ela, sendo mais fácil os desenhos. Pois que me enganei. Os japoneses produzem romances também, o mangá é uma outra coisa.

Basicamente, por se trabalhar com palavras e imagens, as histórias ganham quando a imagem é mais importante na construção do sentido que a própria palavra. Sendo o contrário, melhor então seria fazer um romance.

O anime Bakemonogatari revoluciona por trazer uma nova proposta de trabalhar com as duas matérias primas do anime/mangá: há uma maior valorização da palavra, mas a palavra enquanto ícone, gravura, dentro da narrativa, com vários cortes mostrando textos, ou apenas palavras, jogando com idéias que se interpelam com as imagens do anime, muitas vezes, imagens-palavras: placas, semáforos, outdoors, etc.

Por ser especialmente dialogal, o anime aproveita para dar novas visões, novos ângulos e perspectivas de se ‘ler’ as imagens, com câmeras tortas, close ups em bocas, pés, cabelos e, especialmente, olhos. Os olhos, o momento do olhar, olhos piscando, captando, lendo metonimicamente como lêem os olhos do espectador da cena: na primeira cena, o vento que ergue uma saia por frações de segundo, mas que sobre o olhar de um adolescente ganha momentos quase infinitos; e proporções gigantescas a trazer a tona um punhado de lembranças não relatadas; às vezes, parece, que o autor não tem a mínima intenção de explicar nada.

Claro, um anime para rapazes, com toques de ecchi (gênero erótico em japonês), harém e ação – pouca ação, mas com animação de melhor qualidade. O romance – romance? Tem certeza que pode chamar isso de relacionamento romântico? – entre Senjogahara Hitagi e Araragi Koyomi. Araragi é um jovem ex-vampiro que ajuda algumas moças com problemas sobrenaturais, semelhantes ao seu (ou não) e que ajuda apenas por ajudar. Quando o elogiam como alguém único, retruca, quase friamente: “Mas é que sou o único eu”, quase um fado, inevitável, incontestável.

Brilhantíssimo, no uso da forma anime e da língua japonesa.

YES


“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou” (LISPECTOR, 1977, p. 11)

As coisas invisíveis tomam forma e voz nesse brilhante e inquietador filme de Sally Potter. Uma diarista falando sobre a sujeira e os seus significados: as leituras que se podem insurgir do lixo de cada um – não apenas o lixo visível, mas a poeira, os pêlos, o DNA, os micróbios: “Eles existem, fornicam em todo lugar e se multiplicam. Eles estão vivos porque partes de nós estão mortas” (tradução livre).

A voz da doméstica dando existência àquilo que se esquece que existe é uma redundância e uma alegoria da própria estar falando: a câmera de Potter faz questão de mostrar e dar ouvidos a cozinheiros, estrangeiros de países do Sul e do Oriente, como quem diz “Vejam! Eles existem e eles falam”.

A narrativa gira em torno do romance de uma cientista microbióloga e um cozinheiro em Londres. Ambos, estrangeiros: ela nasceu na Irlanda e viveu boa parte da vida nos Estados Unidos; ele, nascido na capital do Líbano, Beirute, tendo se formado cirurgião lá, fugiu ameaçado de morte, por tentar salvar a vida de um homem.

Guerra! É a melhor palavra para definir o filme – “A guerra está na alma do homem” – e até mesmo no relacionamento amoroso: ele é um médico e ela também, ela lida com microvidas e a empregada doméstica conhece também a existência dessas mínimas vidas, mas há uma grande diferença: “É você! O seu povo se sente superior. Vocês querem reinar!” diz ele, ao propor o fim do relacionamento, pois se sente invisível ali e precisa voltar para Beirute. As microvidas existem e todos as conhecem, mas é ela quem quer aprender, entender, dominar. Guerra, os superiores e a invisibilidade dos povos.

Não falo do final para não ser descortês com quem possa se interessar em assistir. Falo apenas da forte ligação que senti deste filme e as primeiras linhas de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, que epigrafa essa resenha. Nada nos informa uma possível leitura do romance por Potter, mas o final é tão claro e a ligação tão evidente: “Não existe tal coisa como o “nada”. Pode ser muito pequeno, mas ainda está lá. O ‘não’ não existe: existe apenas o SIM!”

dezembro 02, 2010

Harry Potter e as relíqueas da morte - Part I

Antes de mais nada, mãos, uma na consciência e outra no bolso. Ao toque de meus cerebelos devo admitir: não sou especialista de nada do que falo aqui. Nem agora, nem mais adiante. Mas vamos ao filme, pois o título se impõe.

Ahn? Sobre a mão no bolso? Sim, claro: procurava meu isqueiro, mas não o encontro pois subitamente lembro não ser fumante (como me sentiria se tivesse achado? Um dia ponho um em meu bolso só para saber como é a sensação). Coisas de esquecido profissional.

Últimos episódios – sim, já é o filme – da saga de Harry Potter. O último livro foi dividido em duas partes: um jogo de marketing mas que, haja vista a densidade do livro, vem a calhar em favor da própria narrativa.

Diferente dos dois últimos filmes da saga, onde David Yates sofreu da angústia dos fãs fascistas da fidelidade ao texto, tendo que enlatar um tubarão em lata de sardinha – dois tubarões, acctually – Yates pôde aproveitar para mostrar a que veio e conseguiu, a meu ver, construir uma história coerente, dramática e breathtaking.

À morte de Dumbledore, no filme anterior, sucede um início de filme já envolto em tensão; tal tensão – como um stress mesmo – o diretor tem oportunidade de usar em cenas de ação, mas, especialmente, de puro drama. O negro é a cor. A falta de saturação nas cenas abertas, nas cidades, no Ministério da Magia, sugerem o ambiente sem vida – modos de recepção das cores usados desde o primeiro filme em que alguém morre, Cálice de Fogo – intensificado pela morte de Dumbledore. Cores vívidas só são vistas mesmo dentro da barraca que Hermione leva em sua bolsa, na proteção e abrigo dos três melhores amigos.

Um filme especialmente dramático: na morte de Mad-Eye, a fuga de Harry, Ronny e Hermione, quando Ronny separa-se deles, o rapto de Luna, etc. Mas 'paga o filme' (e isso não teria sido possível sem a divisão do livro) Harry Potter, voltando a cidade onde nasceu e encontrando o túmulo dos pais – a fuga da armadilha de Voldmort, também é uma cena louvável – e a morte de Dobby, nos braços de Harry, feliz por o ter ajudado, por ter sacrificado-se por aquele que o deu a liberdade e assim, tornando-o um ser muito mais fiel que um servo, um amigo.

Podemos esperar para o próximo filme muito mais ação, sendo esse uma introdução dolorosa e amarga do último capítulo da saga.