janeiro 21, 2011

A Obscena Senhora D - Hilda Hilst

“que cê disse, menino?
o que você ouviu: um susto que adquiriu compreensão, isso era Hillé.” 
(HILST, p. 89)



Das lendas que correm sobre as insaciáveis mulheres de Jorge Amado em sua literatura, nenhuma das que ouvi dizer – pois sendo que nunca li – foi capaz de equiparar-se a sede de descoberta, de vontade de saber, quase carnal – de quem quer saber, mas não só saber; sentir que sabe, no sangue, nas entranhas – sede sexual de compreender, de Hillé, a obscena senhora D: D de Derrelição, desamparo, abandono. Não há o que equiparar-se, talvez, pois não se pode comparar literaturas a níveis ou processos cumulativos de mais ou menos. O que quis inferir no tocante a comparação foi da minha própria excitação intensa e erigida ao beber das palavras de Hilda.

As pernas que se abriam para o sorver de Ehud, para o sexo de Ehud, eram as próprias páginas do livro aberto – dilata-se as pupilas e os poros, oros, orifícios; as pernas que se abriam tinham uma mente já tão escancarada que de tudo duvidava e enquanto tentava entender o próprio compreender, deixava-se foder por Ehud, ele, incapaz de responder-lhe, pois quem poderia,se Hillé ainda procurava a pergunta. Mas não passava mais de que uma (das várias) lembranças: Ehud já morrera, há alguns anos, por volta dos 60/70 anos, e Hillé era apenas uma velha que vivia, já desde antes da morte do marido, ao pé da escada e lá, procurava, sem saber o que, mas procurava.

A Obscena Senhora D narra, rapidamente – pouco mais de oitenta páginas – a trajetória de uma mulher, solitária, que decidira isolar-se do mundo, das convenções, mas sem desaparecer do mundo (o que com certeza, gera incomodações daqueles que querem a vida retilínea e objetiva de convencionalidades e a odiavam, os vizinhos); uma mulher que de tão inteligente desiste de conceder toda e qualquer idéia: “Hillé, andam estranhando o teu jeito de olhar / que jeito? / você sabe / é que não compreendo / não compreende o quê? / não compreendo o olho, e tento chegar perto.” (p. 21).

A natureza forte e questionadora de Hillé, provoca em nós, seus leitores, o próprio desejo de se perguntar, mas como não sofremos como ela (ou talvez, muito pelo contrário, sofremos, diferentemente dela) as indagações da Senhora D soam como ferinas ironias, desmistificadoras, anti-sacras: “Ai, Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco?” (p. 45). E se, então, deus possuísse cu? lá atrás dele, comprimido escondido, podre? Orgulharíamo-nos, ainda, de nossa posição na política, na sociedade, no “pálido ponto azul”, de sermos o espirro sujo “desse” deus?

Excelente leitura e instantânea ,até, para aqueles que como Ehud, sentem sede de Hillé, de seus grandes e ainda firmes seios ou de suas dúvidas – que no frigir dos ovos, dependerá na verdade da sede de cada um.

janeiro 20, 2011

Declaration of Dependence - Kings Of Convenience

Kings of Convenience é tudo que o próprio nome sugere. Sabe aquela expressão “Feios, bobos e chatos” – me sinto tão ‘parte-de-alguma-coisa’ quando a leio – pois é. Na verdade, KOC (para os íntimos) é um garrafal, mas sem preenchimento ‘POIS É’. Simples, mas que impressiona por se propor tão incomumente normal.

Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe (nem me perguntem como falar esse ‘o’ cortado. Pra mim isso é “conjunto vazio” em matemática) são a prova de que a Irlanda tem muito mais a oferecer que apenas James Joyce e U2 – e Samuel Beckett. Seu último disco segue mais ou menos a linha dos anteriores: músicas acústicas que nos movem, sem nos pressionar ou forçar, com mãos macias, à poltrona mais próxima, à cama mais fresca, ao canto mais frio e cinza da casa.

Não que sejam (apenas) músicas tristes, mas com seu tom tão suspirado, nos levam suavemente a reflexão e as músicas em si, são pequenas epifanias, pequenas revelações cotidianas. Os títulos de seus álbuns são sempre marcados por um traço quase óbvio e de repente estranho: Calmaria é o novo Barulho (2001), Confusão em uma rua vazia (2004) e, o mais recente, Declaração de Dependência (2009) – traduções minhas.

O último  – Declaration of Dependence – é um misto de bossa-folk. Algumas poucas melodias nos convidam a trancar a cara e escutar, outras já parecem feitas e gravadas em take único, depois de uma xícara de capuccino, como quem diz “ei, aquela lá, lembra? Começa assim...” e assim são Boat Behind, Rule My World e Peacetime Resistance. Assim também é Mrs Cold (segue o vídeo abaixo): “Quando eu posso ter? Quando eu posso ver? Você sabe que fica vulnerável perto de mim” (tradução minha).

A docilidade das vozes de ambos muitas vezes contrasta com o tom ferino de algumas composições, mas, é claro, isso também já faz parte do estilo do ‘duo acústico’ irlandês, como que o conteúdo dos CDs tentasse rimar com o título dos álbuns. E rima.

O Hobbit - J. R. R. Tolkien

Finalmente, viajando pela literatura nerd que deixei de lado durante minha formação em letras e mesmo a escolar, me aventurei por Tolkien. E não deixem-se enganar pela hipérbole comum do vocábulo aventura, pois uso-o no seu sentido literal.

Por mais que belas palavras possam parecer enganar pelo tom – o tom, na verdade, é quem nos engana – e, por isso, exija-se do leitor uma atenção especial, minimiza-se essa atenção na leitura de O Hobbit, não por ser uma escrita de “baixa qualidade” e sim pelo estilo do autor: Tolkien sempre tenta deixar tudo claro e bem explicado, nos chamando atenção tantas vezes durante a narrativa para certo detalhe do temperamento de determinada espécie, a fala de determinada região, o apego de determinados sujeitos, para que fique claro também o sentido de certas reações como a radicalidade e imprevisão de outras.

Trata-se de uma aventura e com um desfecho até certo ponto inesperado (caráter das melhores aventuras) de um hobbit, uma espécime que existiu na Terra Média, muito miúdo – pouco menor que um anão – e meio que parecida com esse que vos escreve: caseira, aversa a longas caminhadas e amante de uma vida simples e objetiva em sua casa. Acontece que, por possuir em seu sangue descendência de uma raça hobbit aventureira,os Tuk, é lançado na viagem para recuperar o ouro de anões amigos de Gandalf – sim, “o” Gandalf.

Claro que, apesar de ter gostado muito, não pude fechar meus olhos à constante caracterização biológica hereditária que há dentro do livro e que revela aspectos – hoje, preconceituosos – da época em que foi escrito, mas usados de uma maneira tão mais “saudável” que em nada é capaz de tirar o brilhantismo do criador de um mundo complexo e de seres complexos.

O livro é um feriado para o leitor: rápido, divertido, fácil de ler, mas não adianta começar a folhear suas páginas sem o mínimo de imaginação. A Floresta das Trevas não ganha vida apenas com as reclamações de fome e cansaço do pequeno Bilbo, nem a frieza assassina de Smaug realça-se sem um leve olhar cruel as páginas em que ele se encontra.

Por fim: o filme já está vindo aí, em duas partes. A primeira poderemos assistir em 2012.

janeiro 08, 2011

Heima - Sigur Rós

Lembra de, na infância – claro, para aqueles que nasceram em 80 e foram crianças em 90 – ter ouvido falar de uma banda cujo o cantor tocava guitarra com um bastão de violino? Eu falo na infância, pois, enquanto esperávamos o Castelo Ratimbum ou o X, ou o Doug começar na TV Cultura, muitas vezes um programa musical podia estar passando e foi lá que ouvi falar, pela primeira vez, de Sigur Rós.

Apenas no ano de 2010 é que tive a nostalgia de, em uma comunidade do Orkut chamada “Masoquistas Musicais”, me deparar com a banda que, pra mim, já não passava mais de que um sonho de menino.

Sim, Sigur Rós é uma banda para aqueles de coração partido. Suas músicas não exigem sua voz, – a não ser que você fale islandês – seus aplausos, seus isqueiros acesos; nada além de um bom e jovem coração doente por paz, a paz que você nem sabia que buscava, pela paz dos acordes de Hoppipolla, Glosóli ou Ára bátur.

Esse filme mostra uma turnê gratuita que a banda fez, após a turnê mundial do álbum Takk, pelo seu país, a Islândia. Podemos conhecer um Sigur Rós caseiro, brincalhão, mas também mais profundo, preocupado com seus ‘irmãos’: Heima, nome do documentário, significa lar em islandês.

Descobrimos o nada que existe na Islândia e temos inveja dele. Desejamos que, também, pudéssemos ter nada, ser nada, nada além de música, uma xícara de algo quente para uma barriga cheia, um bom vento e algumas pipas. Àqueles que não precisam ‘decodificar’ o que escutam para entender, uma boa opção é ouvir essa banda que foi precursora do estilo que consagrou bandas como Radiohead.